Artur da Távola, um dos grandes jornalistas brasileiros, absolutamente deslumbrado por Clara Nunes, foi quem mais lhe dedicou críticas e crônicas. Abaixo, um dos muitos belos textos nos quais ele exaltava a importância da cantora no cenário musical brasileiro e a destaca, como sendo, de fato, e sem nenhúm exagero ou jogada de marketing, a maior cantora brasileira de todos os tempos.
Clara.Clareira.Claridade. Manhã
luz,clareza. Clara. Não sei direito qual a razão pela qual você me emociona como
artista. Acho que você passa um sentimento que,eu sei, é o sentimento do nosso
povo,com suas dificuldades,suas esperanças, seus exageros, suas realizações,
sua desorganização criadora, seus sonhos, mas sua infinita capacidade de
transformar em sentir o que outros transformam em pensar ou em agir.
Por volta
de 1968/1969 não havia ninguém cantando samba,nem acreditando nele. As serestas
morriam. O choro agonizava. O samba de escola só no carnaval. As bossas
(passageiras) eram outras. Samba não faturava. Samba não colava. Samba era
quase proibido. Você o preferiu. Foi mais longe. Seu canto trouxe também o
terreiro, o sincretismo religioso, as raízes africanas de nossa cultura,as que
mais a marcaram. Música passou até a ser chamada de trabalho. "Porque meu
trabalho..." diziam os caras,e tome teorização para explicar com conceitos
eruditos o que a inspiração musical nem sempre dizia.
Clara-Claridade,sozinha.
Mineira. Ex-tecelã. Ex-moça sonhadora como a imensa maioria das moças
brasileiras das cidades e do interior. Sozinha, modesta, sorriso fácil, ar de
quem pede desculpas por estar alí cantando. Nada das entrevistas bombásticas
para efeitos publicitários. Nada de ondas, jogadas, mutretas. Capacidade de
estar na selva sem entrar na selva. Sem ser selva para sobreviver. Clara
mineira, sozinha, voz de claridão, olho de ilusão. Clara no samba. Clara no
canto. Clara bobinha. Clara ingênua. Clara pedindo desculpas por estar alí
cantando. Mas Clara definida, devolvendo ao povo a sua inspiração. De repente o
canto de Clara e a claridão do seu canto foram chegando. Aí tudo mudou.
Clara-sucesso. Clara-recordista. Clara-modelo. E foi um corre-corre!
Clara-recordista no Canecão. Clara-samba vitoriosa! Agora é a Clara-Estrela.
Estrela também é luz. Estrela também é Clara. Clara-Estrela como será? Partirá
para uma sofisticação natural em qualquer estrela? Tentará deixar de
interpretar as raízes do sentimento do seu povo para ganhar elogios em colunas
intelectuais? Abandonará o canto simples de seu povo ? Começará a inventar
bossas vocais para querer ser a melhor cantora do Brasil? Ou Clara-Estrela
continuará Clara, mineira, pedindo desculpas por estar alí cantando lindo pra
gente? Ou Clara-Estrela aprofundará as relações com a temática que escolheu
como caminho, quando tudo indicava uma acomodação à bossas passageiras? Ou
Clara-Estrela será capaz de continuar entendendo e sentindo as razões fundas de
seu repertório, das escolhas das músicas, do amor pelo compositor realmente
popular?
Não sei, nem quero saber. Mas saiba Clara, que você representou até
hoje, na linha escolhida, uma posição muito importante para sensibilidade de
sua gente, da qual seu canto é uma expressão de suas origens. Nela está sua
força. Use-a, pois você é a maior cantora do Brasil .
(Artur da Távola)
Amanhã, a carta de Clara Nunes que foi psicografada pelo médium Chico Xavier em 1984, e entregue a Dona Mariquita (Dindinha), a irmã mais velha de Clara, que a criou após a morte de seus pais.
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